quarta-feira, 30 de setembro de 2015

“Marco Roza no miolo do drama”, entrevista a Nei Duclós, autor do prefácio de “Os vitrais da sala à prova de som”

O escritor MARCO ROZA me concedeu esta entrevista sobre seu romance OS VITRAIS DA SALA À PROVA DE SOM. O impacto da leitura deste livro, que aborda personagens marcados pela tortura no Brasil, me levou a perguntar as raízes dessa relação profunda entre o autor e o tema. Entendi a  resposta como um aviso: todos estamos envolvidos nesse drama, e não como espectadores. Fazemos parte dele e só a coragem expressa na literatura pode dar a dimensão real do estrago feito não apenas no físico, mas no imaginário do país. A seguir, a entrevista com o autor.

P - Qual a relação entre tua vida pessoal e o assunto do livro? Por que escolheu o tema da tortura para teu romance?
R - Tortura, infelizmente, é uma prática universal. A encontramos em todas as culturas e épocas. Em todas as classes sociais, mas especialmente como uma prática adotada quase que com naturalidade para confirmar o que seria desnecessário, ou seja, a superioridade de um grupo sobre o outro, de uma autoridade policial contra os presos já presos, do homem forte contra a mulher ou contra a criança, mais fracas. Vivi de perto como criança muito pobre essa onipresença da tortura através dos espancamentos adotados arbitrariamente pelos meus pais, pelos adultos nos locais em que eu trabalhava (comecei com 8 anos a trabalhar como ajudante numa serralheria). Me tornei adolescente trabalhando como faxineiro na Faculdade de Filosofia e Letras de Juiz de Fora, da UFJF, e acompanhava as discussões subterrâneas no diretório acadêmico (que eu limpava) e pude comparar os espancamentos que eu era vítima com as porradas que os jovens estudantes recebiam quando eram presos. Fui descobrindo também uma certa indiferença com a tortura e com os espancamentos, algo que a gente não gosta de lembrar depois que supera o sofrimento e o constrangimento de ter sido usado, vilipendiado, humilhado e ofendido, e que faz crescer uma cicatriz inversa, para dentro da gente. Percebi também que o tema tortura era sempre tratado pelos aspectos mais racionalmente contundentes o que, acredito, cria uma rejeição imediata nas pessoas, pois é muito difícil racionalizar a tortura. Por isso, achei que com um pouco mais de poesia e de transcendência poderia reposicionar o tema tão universal, tão eterno, tão presente.
P -  A estrutura do livro obedece à simultaneidade narrativa, que pode ser lida tanto,linearmente quanto salteada. Por que decidiu contar essa história dessa maneira? Há algum modelo, alguma referência para essa escolha?
R - Minha inspiração direta é "O Jogo da Amarelinha", de Cortázar. Mas depois de ter lido "O jogo da Amarelinha" várias vezes, percebi que até mesmo o livro dele poderia ser lido na ordem que a gente escolhesse, em vez de se submeter às sugestões que ele faz ao fim de cada capítulo. Daí ter criado um livro que é uma autoreferência continuada, num loop que associei ao DNA, sempre expandindo, mas recriando e se recriando a cada leitura. Além disso, minha parcial formação como Físico (estudei dois anos e nunca mais parei de me dedicar ao tema) Física na PUC-Rio me ajudou a imaginar o leitor como complemento do livro. Algo óbvio mas que para arriscar a construir requer uma certa indiferença pelo eventual acerto e foi isso o que me motivou.
P - Quais tuas preferências literárias?  Teus autores favoritos? Eles influenciaram em Vitrais?
R - Eu sou uma esponja de livros, de ideias, de ouvir conversas alheias. Busco (talvez pelo vício de um quase cientista que tentei ser) o algoritmo que emerge das falas, das almas, dos desencontros, das rotinas, dos conflitos, dos discursos. Me exercito profundamente para não me perder no Pleroma que nos rodeia e nos ameaça submeter e reduzir a nada, como descreve Jung em "Sete Sermões aos Mortos". Convivo com romances, teses científicas, obras espirituais, Candomblé, Umbanda, Virgínia Wolf, Musashi, Faulkner, Arthur Koestler, Joyce, Balzac, Gorki, Tchekov, Fritjof Capra, James Gleick, The Interpreter's Bible, Don Quixote, Borges (que faço uma homenagem no último parágrafo do livro) etc. A lista é imensa.
P - Personagens do livro são criações baseadas em pessoas reais, ou são pura criação literária?
R - Meu caro qual é a pessoa real que não é ao mesmo tempo, enquanto vive, uma criação literária dos nossos arquétipos ancestrais? Quem consegue ou conseguiu escapar?
P - Qual a expectativa que tens em relação à repercussão do livro neste momento em que se mexe profundamente nos porões da tortura? Qual a relação que vês entre teu romance e a Comissão da Verdade?
R - Não tenho nenhuma expectativa. As pessoas que foram vítimas da tortura ou que não mais querem a tortura do Estado tratam o assunto racionalmente, através da formulação das leis, da busca da legítima Justiça. Que apoio. Mas a tortura besta, que corrói almas e as misturam com suor, sangue, vômito e fezes ainda continua aí permanente, no noticiário nosso de cada dia com as milhares de mulheres espancadas e mortas; com as crianças espancadas a ponto de preferir morar na rua, onde também são espancadas pelos adultos e pelos representantes do Estado. Dentro das prisões, a tortura é adotada pelos carcereiros e pelos próprios presos. Tortura é, como disse, universal, onipresente. E a adotamos como fosse uma entidade mítica que pelo que entendo é quase necessária na suas desumanidade exatamente para nos confirmar humanos. Hasta quando?
P - Há uma carga forte de escatologia nos capítulos do livro, relacionada com a exposição das vísceras de uma dor política e social profunda. Como conseguiu dosar esse aspecto rude e pesado com a emoção transmitida pelas pessoas envolvidas na narração?

R - Me senti absolutamente incapaz de reproduzir os efeitos emocionais da tortura. Por isso apelei para imagens fortes que arrancassem o leitor do seu conforto e o envolvesse com a recriação das emoções que pretendia apontar. As apoiando ou condenando, mas sem deixar a saída honrosa da indiferença. Daí a escatologia poética, que ao mesmo tempo exala o doce odor que antecede o cheiro forte e característico dos cadáveres em decomposição. Tentei uma mistura de Baudelaire e T.S. Eliot. Além disso, é um livro que por respeitar a importância do leitor e leitora para emergir do papel, não estabelece nenhum acordo. Não é feito para agradar nem para desagradar. É mais uma tentativa e uma esperança de expor a brutalidade dessa deusa tortura que tanto reverenciamos. E que quando reagimos em vez de superá-la e eliminá-la do nosso sistema, a recriamos em nossos pesadelos e traumas ao legitimar o ato de tortura como uma punição pelas culpas que não temos.

segunda-feira, 28 de setembro de 2015

Torturadores são vermes que proliferam nos porões dos regimes de força ou na ineficiência dos Estados democráticos

Adriana de Andrade Roza escreve na conclusão do seu artigo “Tortura: um estudo crítico de sua digressão histórica”, publicado no site Jus Navigandi que:
“Em suma, quem é torturado quer esquecer o suplício, quem torturou quer a impunidade de uma legislação que vige, mas não obtém a eficácia social almejada. A ineficácia da Lei da Tortura deve-se sobretudo à tolerância dispensada à prática deste tormento, o qual mascara o conflito de duas força poderosas: a luta do homem pela dominação de seus semelhantes, por poder e prestígio, e os direitos à vida e à integridade física e/ou corporal humana.”
O que talvez tenha escapado à articulista é o fato de que o torturado não esquece o suplício. A partir das sessões de tortura se transforma em outra pessoa, que incorpora uma nova alma, nova sensibilidade, nova maneira de perceber a transcendência humana, que inclui, a partir do suplício que lhe foi imposto, a brutalidade nua, crua e irracional.
Se, muitas vezes se cala, é por perceber que é praticamente impossível traduzir o que sentiu nas sessões de barbárie às quais sobreviveu. Como reconhece também ser impraticável, em qualquer regime democrático, punir o torturador com o mesmo vigor com que foi mal tratado.
E o fato de calar-se, permite que socialmente tenhamos a impressão de “tolerância dispensada à prática deste tormento”, como relata a autora do artigo.
Que acredita, de maneira simplista, que a tortura “mascara o conflito de duas forças poderosas: a luta do homem pela dominação de seus semelhantes, por poder e prestígio, e os direitos à vida e à integridade física e/ou corporal humana”.
Uma tese que traz embutida o risco de legitimar os torturadores ao vinculá-los à motivação da “luta do homem pela dominação de seus semelhantes”.
Em “Os vitrais da sala à prova de som” Marco Roza traz à tona um mosaico que mostra que o torturador é uma praga humana, que sobrevive aos conflitos e confrontos históricos, porque os torturados captam na sua nova dimensão humana a impossibilidade de punir adequadamente os torturadores. 
E que nas sessões de tortura, amedrontados e abandonados à própria sorte, as vítimas muitas vezes dão a impressão de legitimar as práticas violentas adotas pelo torturador.
O silêncio dos torturados e a impunidade dos torturadores se combinam e criam o ambiente adequado para que a tortura reproduza seus agentes nas prisões e nos enfrentamentos que escapem à vigilância e transparência da sociedade civil.
Marco Roza tenta resgatar em “Os vitrais da sala à prova de som” a transcendência humana que os torturados representam por estarem, na maioria das vezes, associados com o que há de mais humano nas disputas sociais e históricas que perderam. Diferentemente dos torturadores que não sabem o que é disputar o poder através de regras democráticas. 
Porque os torturadores são apenas vermes que sobrevivem nos porões das ditaduras, dos regimes de força ou nos labirintos da falta de controle e punição dos Estados democráticos.

sexta-feira, 25 de setembro de 2015

A tortura como herança da impunidade e a reação sugerida por Marco Roza em “Os vitrais da sala à prova de som”

Maria Laura Canineu, diretora do Human Rights Watch para o Brasil, afirma em entrevista recente que: "A permanência da tortura é um dos pontos mais sensíveis na proteção de direitos humanos no Brasil. Em pelo menos 64 casos de tortura analisados por nós entre 2010 e 2014 em cinco estados (PR, SP, ES, BA e RJ), mais de 150 agentes públicos, policiais civis, militares, agentes penitenciários e socioeducativos, foram identificados."
Segundo a diretora, os casos são inaceitáveis para esse "estágio da democracia". E acrescenta: "As ações ocorrem nas ruas, nas viaturas, nos centros de detenção, nas cadeias. E os métodos são os mais cruéis, como choques, espancamento, violência sexual, ameaça e outros métodos que, no nosso estágio da democracia, a gente não espera ainda que haja".
E concluiu: "A tortura é herança da impunidade. O fato de agentes saberem que não serão punidos propicia que [a tortura] permaneça e este problema é crônico. É a sensação absoluta de impunidade", declarou a diretora.
Veja a reportagem completa em http://g1.globo.com/politica/noticia/2015/01/ong-diz-que-tortura-por-parte-de-agentes-publicos-permanece-no-brasil.html 
E se estiver disposto a reagir para enfrentar a metástase deste “câncer tortura” que se espalha preferencialmente para os tecidos sociais mais desprotegidos, como os mais pobres, moradores das periferias, negros e mulheres talvez você considere aproveitar as reflexões que o escritor Marco Roza realiza no seu livro “Os vitrais da sala à prova de som”.
“Enquanto nos concentrarmos nos torturadores, apenas, tendemos a perder a guerrilha contra a tortura, porque trata-se de um sistema incrustrado em vários subterrâneos do poder (como um câncer) que é realimentado pela indiferença social e por nosso temor da impunidade que tornam invisíveis os torturadores em vários níveis de vivências sociais”, diz Marco Roza.
No livro “Os vitrais da sala à prova de som” as motivações dos torturadores são dissecadas na sua ânsia de controle absoluto das vontades humanas através das agonias impostas ao algozes submetidos, geralmente com anuência do Estado.

“Talvez seja o momento de reforçarmos a vitória permanente que os torturados sempre terão sobre os torturadores, pois os torturados se vinculam com a transcendência humana, e assim seremos capazes de contagiar social e culturalmente nosso ambiente social e acabar com os focos de torturadores.”

quinta-feira, 24 de setembro de 2015

Resgatar os torturados para viver sem medo da sanha dos torturadores, como defende Marco Roza em “Os vitrais da sala à prova de som”

Está no site da Anistia Internacional, em português: “Ao longo dos últimos cinco anos, a Anistia Internacional tem pesquisado e divulgado informações sobre tortura em pelo menos três quartos do mundo – 141 países, de todas as regiões. No início de 2014, uma pesquisa global da Anistia Internacional revelou que quase metade da população mundial teme um dia ser torturada. No Brasil, este índice chega a 80%.”
Talvez você concorde com a tese principal de “Os vitrais da sala à prova de som”, de Marco Roza, que resolveu enfrentar os torturadores nos seus arquétipos subterrâneos de poder, sem controle; da violência para provar esse poder, sem apuração e punição, porque a sociedade está paralisada de medo.
E após a leitura do livro, quem sabe, reforce, como Marco Roza o faz, sua fé na transcendência humana, que é superior às motivações das ratazanas de torturadores.
Porque os torturadores se alimentam do nosso medo, conforme a Anistia Internacional mostra na sua pesquisa, e são agentes na busca inconsequente, porque impossível, de controlar o espírito humano através da dominação, do massacre e da dor imposta aos seus algozes, sempre muito mais avançados do que os torturadores, historicamente.
Se aprendermos a levar luz a esses porões do espírito humano, resgataremos os torturados e os traremos para a liberdade e a luz. E eles e elas nos ajudarão a viver sem medo da sanha dos torturadores, como aos poucos avançamos no respeito aos direitos femininos, às opções sexuais e à diversidade das raças que, humanas, são essenciais para nosso tecido social.

quarta-feira, 23 de setembro de 2015

É impossível torturar o espírito humano, como demonstra “Os vitrais da sala à prova de som”, de Marco Roza

O relato a seguir foi extraído do “Estudo Sobre a Tortura no Brasil”, publicado pela Fundação Perseu Abramo. Você pode ler a íntegra se tiver estômago em http://novo.fpabramo.org.br/content/estudo-sobre-tortura-no-brasil
“Alguns métodos de tortura são concebidos para cumprir, mais especificamente, o objetivo de desestruturação psicológica: é o caso das técnicas de desorganização sensorial, utilizadas no método chamado "geladeira", em que a manutenção de um prisioneiro em cubículo impõe limitações à organização do movimento e ao exercício das possibilidades posturais, propondo não só a restrição do espaço físico mas também do espaço psicológico; a permanência em celas contínua e fortemente iluminadas, a disposição aleatória dos intervalos de refeição, as mudanças bruscas de intensidade ou frequência dos sons, queda ou elevação rápida de temperatura, além da inexistência de registradores do tempo social.(relógios, calendários, etc.) impedem a percepção de qualquer ordenação sistemática, destroem a lógica das sucessões e dos referenciais externos - em geral estáveis e bem definidos, como a passagem das horas, da gradativa-passagem do calor para o frio, etc. - e tem por finalidade desintegrar os referenciais internos - certezas, objetivos, valores etc. - e tornar o torturado incapaz de realizar qualquer avaliação, de estabelecer critérios do que é ou não importante e, desta forma, aumentar a possibilidade dele fornecer informações.”
Em “Os vitrais da sala à prova de som”, o autor Marco Roza preferiu que seus personagens superassem com a determinação do que nos faz humanos todas as artimanhas dos torturadores, que nunca conseguiram (nem mesmo com as técnicas que desenvolveram na época da Inquisição) interromper o fluxo do espírito humano rumo à liberdade e à dignidade.
Até mesmo de uma cela fria ou de um ataúde lacrado, como relatamos em “Os vitrais da sala à prova de som”, é possível emergir mais forte e mais humano do que qualquer torturador.
É impossível torturar o espírito humano. Sejam dos prisioneiros políticos de classe média, que reagiram com dignidade à prepotência da ditadura militar, ou dos pobres e pretos, vítimas preferenciais dos massacres ainda cotidianos nas delegacias de polícia.

Como também é possível reagir e superar as torturas miúdas nos ambientes de trabalho, nos relacionamentos afetivos que deram errado ao resgatarmos, com fé, nossa essência absolutamente humana.